Você sabia:
Que a primeira Olimpíada na América Latina aconteceu no México em 1968? Os Jogos Olímpicos foram realizados na Cidade do México a uma altitude de 2.300 metros do nível do mar. Foi a primeira vez que o número de nações participantes passou de uma centena.Os Jogos atraíram 112 países, 5.516 atletas, sendo 781 do sexo feminino.
O longa-metragem do diretor Ugo Giorgetti, “México 1968 – Última Olimpíada Livre”, conta a história da primeira edição latino-americana das Olimpíadas, realizada no México em 1968.
Ginásio do Ibirapuera, ringue de boxe. Pouca luz, muitos pernilongos e nenhum movimento. O cineasta Ugo Giorgetti aguarda o técnico Antonio Carolo. Não, ele não vai se tornar um pugilista. O objetivo é conseguir uma entrevista para seu novo documentário, cujo tema é a Olimpíada de 1968 no México. Carolo foi o treinador da delegação brasileira enviada para a competição, formada por apenas dois atletas: Servílio de Oliveira, medalhista de bronze, e Expedito de Alencar, personagem que simplesmente se perdeu ao longo do tempo.
“Espero que ele me conte mais sobre o Expedito. As histórias sobre os perdedores são as mais interessantes”, comenta Giorgetti. “Você acredita que não tem sequer uma foto do Expedito na Federação Paulista de Boxe?”, lamenta. “E onde ele está agora?”, pergunto, inocente. “Morreu assassinado. Em uma pizzaria. Assalto”.
Carolo, com cerca de 90 anos, demora a chegar e Giorgetti decide que é melhor adiantar o expediente e falar logo com a reportagem sobre seu filme, um longa-metragem que veio a convite do projeto Memória do Esporte Olímpico Brasileiro.
Por que você escolheu falar sobre a Olimpíada de 1968?
Ugo Giorgetti: Porque ela é muito singular.1968 foi um ano diferente no mundo inteiro. Houve as manifestações dos estudantes em Paris; aquelas contra a guerra do Vietnã, nos Estados Unidos; teve a invasão da Tchecoslováquia pelas forças União Soviética; teve as manifestações violentas no Brasil, contra a ditadura da época, e que acabaram no AI-5 (Ato Institucional no 5). Ou seja, há um contexto de turbulência no mundo e um evento esportivo tinha que sofrer inevitavelmente as consequências disso. A Olimpíada de 1968 se dá nesse cenário, completamente diferente de tudo que tinha acontecido antes.
Além disso, ela ocorre num país latino-americano, o que também é uma novidade. Anteriormente, as Olimpíadas foram em países europeus ou desenvolvidos. Então esta também é muito especial por causa disso.
Existe ainda um outro aspecto: havia um mundo que estava terminando e não percebíamos. Era um mundo em que a técnica não estava tão voltada para o mercado. A técnica do homem sempre existiu, mas a partir de 1968, a técnica começa violentamente a entrar no esporte. Se você for pesquisar o equipamento utilizado em 1968, ele diz muito mais respeito aos equipamentos que se usava nos Jogos anteriores do que depois. Todo o profissionalismo, essa superespecialização que ocorre hoje surgiu depois de 1968, na minha opinião. Ou seja, além desse aspecto político, é a última Olimpíada amadora.
Tem um quê de romantismo nisso?
Giorgetti: As mulheres sempre buscam romantismo (risos). Mas eu acho que sim. A maioria dos atletas era amadora, principalmente no Brasil. E nessa Olimpíada ocorreram fatos cuja origem é política. Tudo isso a transforma em um evento singular. Ela começa 11 dias depois de um massacre horroroso que houve na Cidade do México. Havia até quem dissesse que ela não seria realizada. Ela ocorreu apesar disso. Tudo transcorreu relativamente bem mas com muita tensão. Ela é uma Olimpíada fascinante.
Os personagens do filme refletem esse momento do esporte amador?
Giorgetti: Acho que sim. Eles representam o esporte amador. O que precisa ficar claro é que não havia opção para eles. Não decidiram entre ser profissional e ganhar dinheiro ou ser amador. Não é assim. Só havia amadorismo ou um profissionalismo muito precário. As pessoas eram obrigadas a trabalhar nessa vertente. É algo muito mais da época do que da vontade pessoal. Não é um heroísmo. O que de jeito nenhum tira a grandeza de quem trabalhou dessa maneira. Para você ter uma ideia, a maioria da delegação de 1968 viajou em avião da FAB (Força Aérea Brasileira). O patrocínio era só do governo, mas assim mesmo precário. E o país também tinha a precariedade dessa época. Só uma ou duas delegações foram de Varig, mais “privilegiadas”. Era um mundo que vale a pena revisitar.
Tem um recorte de classe nesses atletas?
Giorgetti: Inevitavelmente. Agora nós estamos a ponto de entrevistar alguém do boxe. Essa pessoa não é do hipismo, e nem poderia ser. Há poucos dias, falando com o Raul Lara Campos, treinador de hipismo, ele disse claramente: “eu não posso afirmar para você que o hipismo é só para ricos, mas veja bem, você tem que comprar o cavalo, cuidar dele, viajar com ele. São despesas que é muito difícil alguém patrocinar”. Isso é a diferença entre uma pessoa que pode praticar esporte e alguém do boxe. Há muita diferença de opinião também. Cada um vê a Olimpíada de uma forma. Isso que estamos falando de política pode não ter sido notado por certas pessoas. Outros falam que notaram, que era extremamente visível. A memória é condicionada. Ela é uma invenção nossa. Estamos inventando algo que não é mais palpável. Estamos revistando um fato e ao mesmo tempo inventando essa Olimpíada. O registro dela só comprova que, algum dia, houve essa Olimpíada e que certas pessoas participaram dela. Isso é possível ver no jornal. Mas o que é a verdade dos fatos? É o que fica na cabeça de alguém. E com todas as deformações possíveis, inclusive do tempo. O passado é gozado. Tinha uma frase linda em um livro do Jorge Luis Borges que ele diz algo como “eu estava voltado do enterro e eu percebi que, entre o trajeto do cemitério e da minha casa, o mundo que eu deixei já estava completamente modificado. O outdoor dos cigarros não estava mais lá”. Mas é verdade. A coisa começa a se deturpar, se modificar, 5 minutos depois que ela se dá.
E ela já tem versões.
Giorgetti: Ela já tem versões, recriações. E você fica com a recriação, que também é uma mentira. Vamos fazer uma recriação que não é a Olimpíada. São representações fugazes do que restou na mente de algumas pessoas.
E o documentário será feito a partir dessas memórias?
Giorgetti: Sim. Eu não quero saber de documentos, isso é besteira.
Nem do filme oficial?
Giorgetti: Para você ter uma ideia do filme oficial, um dos momentos que todas as pessoas – mesmo quem não presenciou ou era completamente indiferente à política, alienado – ouviram falar foi o do dois atletas, Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudação dos Panteras Negras. Na verdade, a coisa mais bonita é o australiano Peter Norman, branco, medalha de prata, que estava entre os dois. Apesar de não ter feito o gesto, ele colocou uma insígnia dos Panteras e foi punido violentamente por isso. Norman os apoiou fortemente. Há quem diga inclusive que as luvas usadas por Smith e Carlos eram dele. A solidariedade era tanta que, quando Norman morreu décadas depois, os dois atletas americanos foram até a Austrália carregar o caixão dele. Para você ver a magnitude que teve esse negócio. E no filme oficial nem se fala do protesto, muito menos da relação deles. E esse não foi o único, houve vários protestos, por exemplo, quando eles são desligados da concentração. Inclusive por atletas de ponta. E isso não é citado no filme oficial.
Enfim, o passado já foi, escapou da gente. Como foram anos bons – nessa Olimpíada eu era jovem para caramba – é legal lembrar. Se o passado não foi trágico, se foram experiências razoáveis, é uma coisa muito interessante. Mas é porque eu era jovem, não porque o passado foi daquele jeito.
E os personagens são interessantes?
Giorgetti: São muito interessantes. Eu não gosto de uma vertente que está se difundindo muito – e é fortemente promovida pela televisão – que é o de pessoas “emocionantes”. Enquanto o cara não chora, não se tira o close dele. E fica-se induzindo isso na entrevista, perguntando o dia da morte, do caixão. Eu detesto isso. O fato tem que ser emocionante pela sutileza, não pela grosseria.
Como é o outro filme que você finalizou agora?
Giorgetti: Também é sobre o passado. Ele se passa em 1971, em plena ditadura, e é uma visão do período a partir de algumas pessoas daquele tempo que não eram, por exemplo, da luta armada. É um filme que você procura ver a pessoa como ela é e é surpreendido. Existe, por exemplo, um cara super reacionário que tem uma atitude generosa. É um filme cujo objetivo é não ficar no lugar comum de mostrar que, de um lado tinha torturados e de outro, torturadores. Não era só isso. No meio tinha 95% da população. O filme se passa em poucos dias, de um momento histórico, em que as pessoas estão enfiadas lá. Não se escolhe o momento histórico para nascer.
Memória e esporte são temas que têm surgido para você, lembrando do filme sobre o boxeador Eder Jofre [Quebrando a cara] e do Boleiros 1 e 2?
Giorgetti: A memória me preocupa. Me preocupa o tempo. Ele é o único problema que temos na vida. O resto se resolve. O tempo passa com uma velocidade impressionante, você não se dá conta. Não percebemos que ele está passando de modo diário. O tempo é terrível porque você acorda um dia e ele passou. Isso me deixa muito preocupado. E é uma coisa recorrente nos meus filmes. Outra coisa é que você estabelece planos que se desfazem rapidamente. Você acha que vão durar muito e não duram nada. O primeiro documentário que fiz foi sobre o bairro dos Campos Elíseos, aqui em São Paulo [Bairro dos Campos Elíseos, 1973]. Esse bairro foi concebido para ser aristocrático muito antes da Av. Paulista. Era um local de plantadores de café, com alamedas e terrenos com metragem pré-concebida. Era muito civilizado. Vinte anos depois ele era a boca do lixo. Concluo que os projetos feitos são destruídos com uma velocidade espantosa. Parece que não, que somos os mesmos. Parece que quando eu sair daqui serei o mesmo. Mas não sou. A memória é buscar algo que ficou para trás, sem confessarmos para nós mesmo que isso já ficou para trás, que vamos reinventar para nós mesmos. É o que estamos fazendo aqui hoje.
Mas buscar a história dos outros também e buscar a si mesmo, não?
Giorgetti: Sem dúvida. É uma luta. Tudo que a gente faz é com vontade de perpetuar um pouco a nossa passagem horrivelmente rápida pelo planeta. A sua casa, por exemplo, dura mais que você. É uma luta do homem porque é o único animal que sabe que vai morrer. Os outros animais sentem, mas não sabem. Mas, por outro lado, para a arte é uma benção porque são histórias maravilhosas.
Carolo chega. É hora de Giorgetti deixar o lugar de entrevistado e se tornar o entrevistador.
Além dos documentários médias-metragem, o projeto Memória do Esporte Olímpico Brasileiro também terá um longa, de 52 minutos, cujo título provisório é “Contadores de história”.
O filme reconstituirá a Olimpíada de 1968 no México a partir da lembrança de seus protagonistas. As entrevistas com membros da delegação brasileira já estão sendo feitas pelo diretor convidado, Ugo Giorgetti.
Giorgetti escolheu falar sobre essa Olimpíada em particular por considerar o ano de 1968 muito marcante na história mundial. No Brasil, o Ato Institucional no5 endurecia a ditadura militar e ampliava a perseguição aos seus opositores. Enquanto isso, a Guerra no Vietnã continuava e a contracultura invadia os Estados Unidos, assim como o movimento dos direitos civis. A República Tcheca vivia a Primavera de Praga e a França enfrentava os levantes de maio.
Dentro cenário agitado, o Brasil conseguiu seu melhor desempenho olímpico da década. No México – primeiro país latino-americano a abrigar os jogos – foram uma medalha de prata e duas de bronze.
No atletismo, o salto triplo novamente rendeu medalha ao Brasil: Nelson Prudêncio conquistou a prata. No boxe, Servílio de Oliveira conquistou a primeira e única medalha da modalidade, bronze no peso mosca.
A terceira medalha veio da vela: na classe Flying Dutchmann, Reinaldo Conrad e Burkhard Cordes ganharam o bronze.
A Olimpíada também ficou marcada pela saudação dos panteras negras feita pelos atletas americanos Tommie Smith e John Carlos (foto acima), além de outras manifestações políticas.
Documentário: “1968 – A Última Olimpíada Livre”
Produtora: Canal Azul
Diretor: Ugo Giorgetti
Localidade: São Paulo (SP)