O último dia do Encontro Temático Esporte, Cultura e Memória, realizado na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, foi marcado por discussões técnicas sobre como fazer documentários. O jornalista Helvídio Mattos e o roteirista Newton Cannito, que participaram da mesa ontem pela manhã, deram depoimentos e conselhos às produtoras vencedoras do edital Memória do Esporte Olímpico Brasileiro.
Helvídio, jornalista e Coordenador de Reportagens Especiais da ESPN Brasil, contou um pouco de sua experiência em matérias como “50 anos da Copa de 1958” e “O filho sueco do Garrincha” e comentou suas impressões sobre a prática jornalística: “Existe uma diferença brutal entre reportagem e documentário. Não tenho o costume de fazer um roteiro inicial e gravar a partir dele. O que a gente faz é uma tremenda pesquisa antes para contar essa história. Vejo quem eu vou entrevistar e, a partir disso, percebo por onde eu vou. Isso diferencia a reportagem especial de um documentário”.
Para Newton Cannito, “a mania do ‘lead’ jornalístico de contar tudo no começo – onde, quando, porque – acaba com o filme logo de cara. Tem mídias muito melhores para passar informação que o documentário: texto, jornal, internet etc”.
“Nem sempre um documentário acredita na mesma coisa que o jornalismo. O jornalista fica preocupado se o entrevistado está mentindo ou não, e o documentarista não. Mesmo assim, esse papo de que o documentário não ter roteiro atrapalha muito. Não dá para filmar 80 horas sem minimamente pensar no que se vai fazer. A filmagem tem que ser sacralizada, você estar ligado nela o tempo todo. Você pode filmar 2 horas e não ter nada significativo. Você tem que ficar muito ligado. É o famoso um olho no peixe e outro no gato”, completou Cannito.
Doutor pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), ele trabalhou como roteirista na TV, com a série 9mm, e no cinema, com “Quanto vale ou é por quilo?”, entre outros. Cannito defendeu no debate o uso de técnicas como o “voice-over”, ou seja a locução em documentários: “Não sei de onde tiraram essa ideia absurda de que não pode ter locução. Parece que se o documentarista falar é autoritário. Mas te pagaram para falar, esperam que você fale. Você pode falar algumas coisas sim, normal. Você pode ter filmes monológicos – se você tem muita coisa para falar, usando até mesmo outras pessoas para defender a sua tese – e dialógicos – quando você se deixa contaminar pelo jeito dos personagens. De ambas as maneiras podem sair coisas muito legais”.
“A voice-over, é um dos elementos da narração. Tem mais coisas além da voz e da imagem. Tem vários recursos que vão compor seu ponto de vista, a voz é um personagem a mais do filme”, completou.
Para Cannito, os diretores e roteiristas também precisam pensar no gênero do filme. “Documentários têm um lado de tese, de discurso, não é uma narração com personagens. Mas alguns têm personagens maravilhosos. E daí não é mais uma dissertação, você vai ter que usar técnicas de narração. Uma delas é pensar qual é o gênero daquele filme – comédia, drama etc. Quando você pegar um gênero, tem que investir nele. Faça um perfil do personagem. É como montar um reality, onde se escolhe quem faz o quê. Algum recorte do personagem você vai ter. Saiba qual. Saiba o que te interessa no seu personagem”.
Segundo ele, é preciso enxergar “o que tem além daquele personagem”. “Será que é só esporte? Façam outras perguntas como por exemplo sobre seu signo, uma citação de frase, do que ela mais gosta. Você também precisa se livrar dos seus preconceitos para conversar de fato com o personagem, falar de igual para igual. Quais são as éticas dos esportistas? Tem uma ética lá, que em cada modalidade é diferente. Você precisa saber qual é. Qual é o vocabulário deles? Qual é a piada que eles gostam?”, questionou.
As colocações finais de Cannito também apareceram na mesa da tarde, que contou com a participação de Ricardo Kotscho. Repórter há mais de 40 anos, ele é um dos grandes nomes do jornalismo investigativo no Brasil e recomendou às produtoras que também procurassem conversar “de igual para igual” com os entrevistados.
“Eu nunca cheguei na casa de ninguém com uma câmera ligada. Primeiro eu vou uma vez, converso. Vou outra vez, converso de novo. É preciso ganhar a confiança de quem você vai entrevistar”, afirmou.
Kotscho ouviu entusiasmado os projetos de cada produtora. “Vocês têm histórias belíssimas aqui”, disse. O jornalista sugeriu ainda que os diretores não utilizassem gravações “em off”. “Você sempre tem que se identificar, dizer ao entrevistado de onde veio e o que quer com ele. Deixar claro. E quando ele disser algo importante para o filme e a câmera não estiver ligada, fale que você acha que aquela informação deveria ser dita abertamente. Mas só coloque se ele concordar”.